Quando desceram o seu corpo da cruz, duas culturas continuaram de costas viradas uma para a outra. Fui para casa e não pude parar de pensar nisto.
As sombras eram já o limiar do shabat e o hálito dos cordeiros saia pelas janelas.
As mãos de Herodes e de Pilatos, que se haviam estreitado no dia anterior, significaram pouco. Dois sistemas de poderes nenhum dos quais tolerava o outro, já Tucídides, o grego, havia dito uma coisa parecida.
Romanos e judeus, que resistiram até à última hora aos incómodos daquela sexta-feira, não tiveram nenhum entendimento especial sobre o corpo dele.
Houve uma altura em que estiveram em silêncio com receio de o despertar. Aqueles minutos que se seguiram ao brado que o crucificado pronunciara na cruz, a natureza a desmoronar-se, o dia a desconstruir-se, o sol fazendo da terra um buraco negro, modificaram algumas insensibilidades e trouxeram também algum medo, cavado nos rostos. Mãos tiraram um som ôco dos peitos como lamentação seca, mas a emoção flutua como as nuvens e uma forma agora logo já não é.
Por isso, no dia seguinte, ninguém iria acordar sobressaltado, por causa do corpo que estava a ser descravado da cruz.
-Apresentava todos os sintomas-. Disse um romano, enquanto a mão esquerda afrouxava a pressão no punho da espada.
-O corpo dele estava sombrio, como a tarde que caía.
Esta apreciação veio de alguém que estivera no grupo daqueles que esperavam uma aparição de Elias. Queria significar com o «sombrio», com certeza, o facto da hora tardia em que o sol já estava para lá do mar.
-Se uma das razões pelas quais foi crucificado, foi por ser considerado sedicioso…- dialogava um velho rabino nas imediações do monte Caveira.
- Foi por ser um malfeitor!- interrompeu-o, bruscamente, um terceiro-, Que Caifás mandou prender Jesus, porque tinha a responsabilidade de reprimir aqueles que causavam problemas- concluiu.
-Se uma das razões foi essa, e por isso levaram seu corpo ao madeiro- retomou o velho a sua suposição-, vimo-lo ser descido da cruz não como um malfeitor, mas tratado com o cuidado com que se trata um justo.
- Desceram-no da cruz com o mesmo cuidado com que tratamos o nome de Deus.- foi o ponto de vista de alguém do mesmo grupo.
-Com certeza não podiam quebrar nenhum osso-.Supôs outro.
Estas palavras deslocavam-se das bocas directamente para o meu coração. Uma imensa curiosidade pedia respostas.
Confesso que não a acompanhei (não por uma atitude de desonra ou desrespeito pelos meus progenitores), apenas por eu ter vinte anos e minha mãe já passar dos setenta. Queria chegar rapidamente a casa para consultar o rolo do Saltério, corri para um salmo davídico que falava em que osso algum daquele corpo seria quebrado, outro profeta dizia, não me lembro onde, que o seu corpo seria sepultado por um rico.
No átrio da minha casa, depois de ter passado pelas conversas na rua, meus tios também conversavam a meio tom e a conversação não transbordava de assuntos, era o mesmo de ontem e de hoje, os acontecimentos daquela Festa, que agora se iniciara, marcaram com alguma agonia as vozes.
-«Poderia não ser um Deus- pensei comigo, enquanto consultava o Psaltério-, mas o carinho, o respeito, com que aquelas mãos estavam a tirar o seu corpo da cruz, como se aquele sangue queimasse, revelavam que não se tratava de um qualquer.»
-Apresentava de facto todos os sintomas da morte?- perguntou a minha mãe, como se tivesse adivinhado os meus pensamentos, por uma qualquer ligação umbilical.
- Era o que corria na cidade- apressei-me a responder. A confirmação post mortem fora rigorosa, selvática ao ponto de uma lança perfurar o peito, mas legalmente rigorosa.
Com certeza que o tempo da Festa iria demorar mais a passar, tinha trazido eventos novos. Havia na atmosfera da cidade o sentimento de que não seria uma Pessakh igual às anteriores. Mil e tantos anos que se passaram, desde a festa do exôdo, iniciada no Egipto, e a de ano nenhum poderia ser considerada igual a esta.
Aquele corpo reunira todas as conversas. Os sintomas da morte eram evidentes, tanto assim foi que eu fiquei admirado, como outros ficaram, por lhe não terem quebrado as pernas, os soldados romanos tinham especial gôzo em fazer isso.
-Era como se quebrassem a verticalidade dos judeus- Lembrei-me que era costume ouvir esta frase de meu pai, em cada execução na qual quebravam as pernas dos condenados para chegar o colapso da morte, fulminante.
Não obstante a excepção feita àquele corpo, as duas culturas iriam continuar de costas voltadas, os romanos cintilariam com o brilho das suas armaduras, como um fogo, sobre os judeus empobrecidos, mas eu sentia que aquele corpo iria ficar para sempre entre essas duas culturas, entre os nossos povos.
No início da manhã de mais um sábado, não muito longe dali, ouvi os galos que já deviam estar empoleirados, adivinhei-lhes um ar responsável. As sombras começavam a ficar iluminadas. Eram como um simples resumo da noite.
O sábado pararia todas as coisas, viagens, gestos, o amor. Mas na guarnição romana, na Torre Antónia, caindo sobre os mosaicos da gábata, os passos dos legionários estavam longe do sábado. Nada fazia depôr as armas e a redobrada atenção para evitar os tumultos eventuais da Festa. Milhares de judeus, prosélitos, gregos, homens e mulheres, refaziam a liturgia da saída memorial do Egipto.
Um cordeiro obrigatório seria transaccionado, os pães asmos amargariam na boca e, por causa do que tinha acontecido àquele Jesus, a consciência amargaria também. Aqueles que tinham contactado com o corpo em vida, com a sua vitalidade, sentiam que tinham uma parcela de responsabilidade naquela morte. Por muito que quisessem ignorar, o seu coração carrregava agora uma cultura sacrificial da morte. E o desaparecimento do corpo, embora muitos soubessem o local onde estava sepultado, fazia-os tactear.
-Jovem Samuel- ouvi que me chamavam, quando sai de casa para dar os passos que a Lei mosaica me permitia dar num sábado. Temeroso por estar a penetrar no reduto do inimigo, não obstante contar ali com um amigo, não podia no entanto deixar de arrancar do meu aramaico para o latim, as respostas que me pediam os soldados.
-Que milagre se terá passado para esse Jesus ter morrido tão depressa?- Perguntou-me um deles.
-Uma morte por este processo pode demorar dias- parecia exagerar outro.
-Quem quer que tenha agido, qualquer ignoto demiurgo, poupou-nos a rudeza da tarefa – considerou um terceiro.
-De lhe quebrarem as pernas?- Perguntei.
O centurião, meu amigo, confirmou. Notei que a sua voz estava embargada, ao dizer uma frase tão pequena. Um «sim, não quebramos» levou tempo demasiado. A sua emoção era visível. Fora ele, soube-o depois, que afirmara perante o colapso da voz do crucificado, do seu corpo enfim livre do sofrimento, e da própria natureza, que «verdadeiramente este era Filho de Deus».
O seu corpo morto envolto num lençol de linho, como ontem o vimos, empolgou-nos a todos. Só em alguns a imagem recordada desse corpo ficaria entre lágrimas, nos olhos que exprimiam silêncios interiores como duas luzes molhadas.
Por: João Tomaz Parreira
(Publicado em 24 de Novembro/2006 no Portal Evangélico de Portugal)
quarta-feira, 14 de maio de 2008
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