A cidade era minúscula, como tantas outras nos estados sulistas da América do Norte. O auto-carro que cruzava a região, a maioria das vezes nem parava. Mas nesse dia, para surpresa dos cerca de 500 habitantes locais, descera um estranho e se dirigiu à pensão da Betty Sue.
Bem, aquele era o único local na cidade onde se podia alugar um quarto, comer uma refeição e beber uma cerveja fresca. Betty Sue era o centro nervoso da cidadezinha. Todas as fofocas passavam por lá e para se estar em dia com o mexerico era obrigatório dar uma paradinha lá, pelo menos dia sim, dia não.
O cavalheiro que descera do auto-carro estava munido de uma só mala. Bastante apresentável o tipo. De terno cinzento-escuro, camisa branca, impecavelmente engomada e uma gravata com desenhos modernos, difíceis de decifrar, mas que ficava bem no conjunto. Rosto comprido e sério, a testa alta, o cabelo recuado, cortado à escovinha, os olhos grandes de um azul profundo, a boca larga, lábios estreitos e orelhas meio de abano com o nariz razoavelmente grande.
Parecia preparado para ficar uns dias, pois pagou previamente pela semana. Betty Sue, que fora quem o viu de mais perto, assegurou que era muito sério e de poucas falas. O nome não dizia nada de novo: Nick Thompson. Mas, no fim da tarde, já o estranho era o motivo principal das conversas e todos lutavam para acrescentar mais pormenores sobre o indivíduo. Havia que se apressar, pois quem mais tirasse dele mais teria proeminência na cidade nos dias subsequentes.
O dia seguinte foi de grande agitação na cidade. É claro que alguém que não conhecesse o local nem daria por isso. Só os da terra podiam ver a procura febril de novos dados sobre o Sr. Thompson.
O homem levantou-se cedo. Pediu um café puro, uma torrada e nada mais. Passou no barbeiro para fazer a barba e além da saudação e alguns monossílabos nada mais dissera. Comprou um jornal do dia anterior na banca, engraxou os sapatos com o Tony e se retirou para o quarto até o almoço. Foi aí que Betty Sue tentou sua sorte.
- O Sr. Thompson pretende se demorar por estas bandas? (perguntou com um sorriso franco do seu rosto bolachudo e sempre exageradamente maquiado).
- Talvez (fora a resposta lacónica).
- Vem de longe?
- Um pouco.
- A negócios?
- Certamente.
- Muito dinheiro envolvido?
- É possível…
E assim prosseguiu a conversa. A mulher tentando tirar e o homem sem largar nada. Ficara quase na mesma. Tudo que lhe perguntava ele concordava de um modo pouco convicto, o que a deixou um tanto contrariada e confusa. O que poderia relatar às comadres no fim do dia? Estavam mortas por saber mais do desconhecido e ele ali armado com uma couraça de indiferença perante a curiosidade quase mórbida da pequena cidade.
E não é que fora o Smith da tabacaria que conseguiu a nota mais saliente do dia? Ao vender um maço de cigarro ao Sr. Thompson lhe inquiriu sobre a visita àquela cidade. Porque ali, um local tão pequeno?
- Gosto muito de sossego (foi a resposta).
Todos gostaram daquela palavra. Era sem dúvida um atestado de bom senso e levantou a ideia de que o homem poderia querer se instalar ali mesmo. Afinal, dinheiro era o que parecia não lhe faltar. A Betty Sue lhe vira a carteira cheia, fora os cartões de crédito, e garantia a quem quisesse ouvir, e todos queriam, que o Sr. Nick devia ser um desses milionários excêntricos.
Os dias foram se passando lentamente para o povo da cidade e pouco se acrescentava sobre o mistério do visitante. Vestia sempre bem, apesar de variar muito pouco. Andava muito limpo. Fora visto colhendo plantas locais e terra. Iniciara um jardim no parapeito da janela do seu quarto e respondia com expressões guturais ou monossílabos.
No salão de barbearia se discutia sobre ele a todo o vapor:
- Deve ser podre de rico (referia Tony o engraxate). De outra forma não viria gastar dinheiro num local tão afastado e perdido no mapa.
- Escolheu muito bem, se quer saber a minha opinião (interpôs o prefeito Jackson, meio magoado com a desconsideração do Tony).
- Pode ser um fugitivo da lei (tentou o Barnaby aposentado das linhas de ferro).
- Não tem cara disso (resistiu MacSurrey o barbeiro). Ele é muito calmo para quem está fugindo e já está aqui há mais de uma semana! Um fugitivo não fica tanto tempo em lugar nenhum.
- Pois eu acho que é um escritor, um sábio de alguma espécie! (opinou Larry, um caminhoneiro meio desempregado) Deve estar fazendo pesquisa para um novo livro ou lá como o chamam.
- Bem pensado! (reagiu o prefeito) Lá cara de entendido ele tem! Olha para as coisas sempre com um ar de quem conhece bem. Ouve os assuntos com atenção e apesar de não dar opiniões vê-se perfeitamente que está por dentro de tudo. Eu não me admiraria se fosse professor universitário ou até coisa maior.
- Mas porque é que não fala? (estranhou Tony) Parece até que o gato lhe comeu a língua!
- E lá é preciso falar para se ser alguém? (retorquiu MacSurrey irritado). Lembro-me bem do que meu avô contava de um grande génio que conheceu e que quase não falava. Estava sempre tão absorto em pensamentos superiores que as conversas do dia-a-dia o distraíam e não se dava a bater papo nas esquinas. Pode ser esse o caso.
- Exactamente! (concordou Larry sacudindo com uma risada seu enorme corpo de mais de 2 metros e 130 quilos) Até tem graça, um crânio desses aqui na nossa cidade! Ainda vai tornar famosa a nossa região, descobrindo alguma coisa importante por aqui.
- Seria boa ideia (opinou Jackson com os olhos brilhando). Podia ser que implementasse o turismo. Podíamos ter um hotel ou dois, e quem sabe um drive-in, para dar mais animação à cidade.
- Sim, Porque a Betty Sue já deu o que tinha a dar (comentou o Tony rindo ao que todos gargalharam com gosto).
E de facto, no café-restaurante-pensão, outro grupo, este de mulheres, também conversava sobre o desconhecido enquanto tomavam xícaras de chá e biscoitos de chocolate.
- Tem um ar tão distinto (dizia a Mary Lou). Acho que é mesmo um dos homens mais charmosos que já conheci! Me lembra artista de cinema...
- Poderia ser (riu de excitação a Conchita que estava ali desde que viera do México). Pode bem-estar descansando da cidade grande e se escondendo da fama e dos jornalistas. Li numa revista que há muitos atores que fazem isso.
- Já pensou que emocionante? (sorriu a Sra. Jackson) Isso pode trazer fama à nossa terra, turistas, quem sabe?
- Não parece ator (comentou a Betty Sue, que para todos os efeitos era a maior entendida na matéria, pois hospedava o homem). Parece mais um estudioso ou professor de alguma coisa.
- Sim (retrucou Samantha) tem mesmo cara de doutor! Aquela testa não engana ninguém!
- Olha que se calhar não era mal partido hein? (tentou a Sra. Jackson rindo para Samantha, que era a solteira mais cobiçada da cidade).
- Lá dinheiro tem de sobra! (disse Betty Sue) Isso eu posso garantir!
- E é bem mais bonito que o Perkins (riu Mary Lou lembrando um pretendente de Samantha).
- Mas, falando sério (procurava acalmar os ânimos a visada nas brincadeiras) que o homem tem cara de sábio lá isso tem e ninguém pode negar.
A partir desse dia então, Nick Thompson, passou a ter a fama, merecida ou não, de sábio de grande valor. E tudo que fizesse ou dissesse era interpretado à luz dessa opinião. Se ele pegava uma pena de pássaro que caíra estava estudando aerodinâmica. Se demorava-se a ver o por do sol, estaria compondo poesias imortais. Se respondia por monossílabas era para não gastar seus preciosos neurónios com conversas tolas e se vestia sempre a mesma cor de roupa era porque isso certamente teria um efeito positivo na saúde e bem-estar das pessoas. Até houve quem notasse que o prefeito estava repetindo mais vezes o seu terno azul-marinho...
Certa ocasião enquanto os homens estavam reunidos a tomar cerveja o Sr. Nick entrou e saudou a todos cordialmente. Ofereceram-lhe cerveja e o homem aceitou de bom grado, pois estava quente e uma geladinha ia bem. Discutia-se a supremacia do transporte aéreo sobre o marítimo. Havia, como sempre, dois partidos. Uns defendiam os aviões, outros os navios. A conversa estava acalorada. Havia que aproveitar o fim da tarde em discussão, já que mais nada havia a fazer na cidade, senão esperar pelo jornal da noite na televisão e isso ainda ia demorar ainda um bom tempo.
Depois de muitos argumentos pró aéreos e pró marítimos houve um que teve a ideia de questionar o ilustre visitante, que segundo o conceito geral era um sábio. O arguido olhou para os presentes com ar distraído, levantou as sobrancelhas por alguns segundos e baixando-as de seguida abriu um sorriso suave e encantador e com um leve dar de ombros abanou a cabeça como que reiterando o óbvio.
Aquele gesto foi seguido de perto por todos e por incrível que pareça terminou a discussão. A todos parecera que o génio visitante rematara a polémica como ninguém e o gesto foi descrito exaustivamente sobre as mesas de jantar das várias casas locais. É claro que cada lado da disputa reclamava o referido gesto como sendo a afirmação cabal de sua vitória no conceito do sábio. Mas a verdade é que todos concordavam com a profunda astúcia e tremenda sabedoria do indivíduo.
Ainda não completara um mês que o Sr. Nick estava na cidade e o prefeito já o convidara a ser sócio de um negócio importante, o xerife lhe encomendara dois discursos sobre segurança pública no centro cívico e a senhorita Samantha Brown se preparava para acabar com seus dias de solteira, no que seria o grande casamento da década.
Porém, misteriosa e quase furtivamente como chegara, o estranho se foi. Não chegou a se despedir de ninguém. Não terminou de usar os dias pelos quais pagara a pensão da Betty Sue. Simplesmente saiu de mala na mão e fora dos limites da cidade pegou carona, desaparecendo das vidas de todos sem deixar rastro.
Iniciava-se a lenda, o mito. Tinham sido visitados por um génio por algum tempo e alguns mais espiritualistas até falavam de anjo ou outro ser se uma realidade desconhecida. Houve inclusive quem sugerisse trazer a televisão para fazer uma reportagem, pois jurava que o tal Nick era, na verdade, um extraterrestre que viera investigá-los. Fosse como fosse, tinham sido dias de excitação na cidadezinha.
Passaram-se algumas semanas e um carro com chapa de outro estado e símbolo oficial parou à frente da pensão de Betty Sue. Era um sábado de manhã, perto da hora do almoço e o local estava abarrotado, como de costume. Os dois homens que desceram pareciam de alguma instituição estatal e o carro trazia um emblema na porta. Alguma coisa sobre Saúde Pública. Entraram, pediram café e sanduíches e ficaram conversando um pouco.
Quando a dona da pensão trouxe os pedidos lhe mostraram uma fotografia. Era do Nick! Betty Sue gelou! Conhecia ela o homem? Ela fez sinal que não. Todos os presentes estavam em suspense, acompanhando a situação.
- É algum criminoso? (perguntou ela temerosa)
- Não! (afirmou o homem rindo) Nick não faria mal a uma borboleta! É apenas maluco! Completamente louco! Fugiu do Sanatório de Memphis há dois meses e tivemos uma denúncia que teria vindo para estes lados. É que levou todo o dinheiro da recepção... Ainda era uma boa quantia!
Betty Sue deu um sorriso amarelo e voltou-se. Todos os cidadãos presentes a olhavam. Podia-se ver em seus olhos o espanto e a quase incredulidade.
A verdade é que nunca mais ninguém falou de Nick Thompson naquelas paragens.
Baseado em Provérbios 17:28
" Até o tolo quando se cala será reputado por sábio; e o que cerrar os seus lábios por entendido."
PR. JOED VENTURINI
http://joedblogosfera.blogspot.com/2010/04/conto-o-sabio.html
1 comentários:
Interessante esse conto!!!
Mas é bem isso!!!
Devemos enxergar além das aparências!
E aquele que não tem um conteúdo através das palavras,é complicado!!
Rosana.
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