segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

CONTO: Quando Acaba a Inocência - Naasom A. Sousa

Nesse sábado, dia 22/01/2011, foi o resultado do concurso literário 2010 aqui da cidade onde resido, Paragominas-PA, e ganhei o 2º lugar (categoria conto), com o texto AS REGRAS DO AMOR. No ano anterior, 2009, fiquei em 3º lugar; em 2007 fiquei com a 1ª colocação.
Coloco aqui o conto que ganhou o 3º lugar em 2009.
Espero que apreciem.

 

 

QUANDO ACABA A INOCÊNCIA

 

Eu olhava em seus olhos esbugalhados de terror e temor. Ele estava com os braços estendidos para cima, demonstrando uma total rendição ao gesto que eu fazia. Não conseguia mais olhar para ele sem que aquele arrepio percorresse gélido o meu corpo seminu. Estávamos numa casa de prostituição onde eu trabalhava. Ele estava sentado à beira da cama desarrumada e de cheiro desagradável; eu estava em pé, retesada, com os olhos desaguando em lágrimas. Enfim ele estava diante de mim, indefeso, como assim eu já estivera diante dele muitas vezes. Jurei a mim mesma que quando eu o reencontrasse seria o fim daquela vida de encontros frívolos e o fim da existência dele.

Por fim, fechei os olhos, apertando-os o máximo que eu podia. Esperava apenas o estampido. A arma tremia em minha mão magra e vacilante. Eu tinha vinte e seis anos, estava a ponto de apertar o gatinho... e matar o meu próprio pai.

Naquele momento, em que eu podia sentir o gatilho escorregando, prestes a acionar o mecanismo que expulsaria a bala da arma e concretizaria meu primeiro homicídio, ouvi a voz entrecortada dele a balbuciar palavras quase inaudíveis: "Não faça isso… Francisca… sou seu pai… eu… eu te amo…"

Não me dei conta que deixei afrouxar o dedo e o tiro não saiu naquele instante. Apenas pensei em antes olhar para ele mais uma vez. Tive vontade de sorrir com desdém, mas me contive. Ele já não me conhecia. Foi por isso que tentara comprar uma hora do meu tempo e do meu corpo. Não sabia o que passei, não sabia o que vivi nem o nome que adotei após a sua partida. Não me chamava mais Francisca; todos me conheciam agora por Conceição, a alegre.

Numa fração de segundo foi como se eu retornasse à minha infância e logo me vi indo para a escola com cinco anos de idade. Era meu primeiro dia de aula. Minha mãe me levava pela mão e eu, uma vez ou outra, olhava para cima a fim de fitá-la e sorrir em sua direção para manifestar-lhe minha alegria. Lembrei que, diferente das demais crianças que foram deixadas na sala de aula naquela manhã, eu não chorei. Mamãe sempre me elogiava por isso e se gabava para outras mães perto de nossa casa, vizinhas de fofoca. Eu era feliz.

Eu estava brava. Ainda o tinha sob a mira da arma. Podia ouvir alguns sussurros vindo dos quartos vizinhos. Aquele que um dia fora meu pai continuava imóvel, sabendo que se erguesse a voz morreria de imediato. Limpou a garganta e soprou: "Não faça isso… filha…"

"Não faça isso… filha…", foi o que ele dissera quando aos cinco anos ela levara o caderno para a mesa em que estava servido o almoço. "Nessa casa a hora do almoço é sagrada".

Senti mais uma enxurrada descer de meus olhos. As emoções se manifestando como algo que tinha sido escondido há muito tempo e agora estava eclodindo de forma inesperada.

"Você não sabe o significado de sagrado!" Minha boca e queixo estavam rígidos. Era difícil falar.

"Do que você tá falando?" ele gaguejou acuado.

Fora com essas palavras que ele tentara fazer de escusado minha negação, quando entrara em meu quarto pela madrugada. Eu tinha sete anos. Com movimentos suaves suas mãos tocaram meu corpo ainda pequeno e inexplorado. Assustada eu me retraí. Disse-lhe que aquilo não era bom. Foi então que aquela frase surgiu e grudou em minha cabeça. "Do que você tá falando?". Sem palavras diante do medo que senti ouvi sua próxima sentença: "Vou te mostrar como isso é bom. Você vai gostar".

Eu resisti, mas ele era forte. Ele era meu pai e eu o amava. Amava. Todo sentimento bom que sentia por ele deixou de existir desde aquela noite sombria e terrivelmente dolorosa. Surgiu então o medo, a revolta, o asco. Entretanto, infelizmente, tudo isso não o impediu de visitar minha cama alguns dias por mês pelos anos que se seguiram. Eu dizia que iria contar para mamãe o que ele fazia comigo e, em contrapartida, as ameaças que eu ouvia por parte dele eram capitais. O que mais saia de seus lábios era: "Se fizer isso vou te matar!"

"Se fizer isso vou te matar!" disse eu ainda apontando-lhe a arma. Foi minha reação quando ele olhou para a porta, talvez pensando se eu teria pontaria e agilidade de acertá-lo antes de abri-la e correr para a rua. Eu podia ouvir sua respiração pesada e sentir seu cheiro repugnante. Ainda era o mesmo de dezenove anos atrás.

Há dezenove anos eu tinha conhecido quem realmente era meu pai: um abusador de crianças inocentes; um pedófilo inescrupuloso que havia violado a própria filha. Quando completei onze anos não aguentei mais as humilhações e as ameaças. Contei para minha mãe. Que infelicidade. Ao invés de ficar do meu lado, alcançou uma corda e me açoitou como se faz com um animal de rua. Meu corpo magro ficara todo marcado. Onde estava a mãe que me levara para a escola de mão dada? E a mãe orgulhosa? Minha cabeça era um imenso redemoinho. Cinco anos sendo abusada e minha mãe nem ao menos se dirigiu ao meu pai com tom de suspeita. À noite ela revelou a ele o que eu dissera. Ouvi toda a conversa detrás da porta, tremendo. Eu iria ser morta, afinal. Não dei chance a ele. Fugi naquela mesma noite pela janela do meu quarto, somente com algumas roupas, e nunca mais voltei para casa.

Corri até ficar exausta. Planejei ir para algum lugar bem longe de onde meus pais moravam. Estava decidida. Continuei, pelo resto da noite, andando pela estrada que me levaria à outra cidade. Fraca pela surra e pela fome que sentia, desmaiei no caminho.

Acordei assustada e atordoada. Notei que estava num quarto sem muito conforto. Logo uma mulher robusta entrou e contou-me que me achara desmaiada e me trouxera para sua casa. Disse que seu nome era Matilda. Por sorte ela morava na cidade vizinha. Perguntou-me o que acontecera comigo e, desesperada, expus-lhe os cinco anos de abusos que sofri, o episódio com minha mãe e, por fim, minha fuga. Ela disse que me ajudaria com o que eu precisasse. Disse-lhe que apenas me ajudasse a ir para o mais longe possível da minha cidade. Por um momento ficou pensativa e então deu de ombros. Falou que era uma mulher solitária e que não conhecia muitas pessoas longe dali. Porém sabia de alguém que poderia ficar comigo por algum tempo, mas talvez eu não gostasse. Disse-lhe que qualquer canto era melhor do que estar no mesmo lugar que meu pai. Ela revelou então que a pessoa que poderia me acolher numa cidade mais distante era dona de um prostíbulo. Não pensei muito e aceitei. No dia seguinte partimos para encontrar a tal mulher.

Bela era o nome dela. Ao me ver e saber da minha história se compadeceu e disse que me ajudaria. Por um mês Bela me tratou bem e me fez conhecer todas as garotas que trabalhavam para ela assim como me contava os fatos que ocorriam debaixo do teto que dali em diante eu passaria a morar. Não me sentia bem com o que acontecia ali, mas não revelei isso a ninguém. Até que um dia Bela me pediu que fizesse um grande favor a ela: entrasse num dos quartos e fizesse companhia a um homem especial que…

Não esperei ela terminar o pedido. Sai correndo para longe daquela casa. Fiquei nas ruas como uma mendiga. Passei fome, fiquei suja, não tive lugar para ficar. Não tive escolha. Voltei para a casa da Bela. Comecei a me prostituir com treze anos. Em minha mente uma sentença passou a ser construída: "Era tudo culpa do meu pai".

Naquele lugar me acostumei a fazer coisas que não gostava em troca de comida e um lugar para ficar. Cada vez que ficava com um homem lembrava "dele". Aquilo era o inferno e eu era uma alma que gemia e por dentro clamava por uma luz no fim do túnel. O ódio por meu pai levou-me a fazer uma promessa a mim mesma: se alguma vez o encontrasse em minha frente o mataria.

Agora estava pronta para matá-lo. Ouvi risadinhas vindas do quarto ao lado. Ainda com meu pai sob minha mira, meu coração se contraiu e percebi que isso aconteceu quando pensei em Marcelo e nas risadas que dávamos quando estávamos juntos. Ele e eu nos conhecemos há um ano atrás, numa certa noite em que alguns amigos dele lhe prepararam uma despedida de solteiro. Contrataram meus serviços para aquela noite. Ele era bonito, 36 anos, corpo franzino e apesar da idade parecia inexperiente. Fiz o que tinha que fazer e fui embora.

Uma semana depois Marcelo estava me visitando na casa da Bela. Disse-me que o noivado tinha acabado, que perdera a vontade de casar. Perguntei a mim mesma se a noiva tinha descoberto algo sobre a despedida de solteiro. Marcelo passou a ser meu cliente. Cada vez que nos encontrávamos passava a conhecê-lo mais e vice-versa. Os momentos com ele passaram a ser bons e então, estranhamente, passei a sentir sua falta quando custava a vir me ver. Havia algo diferente na forma como me tratava e eu gostava daquilo. Até que um dia Marcelo me perguntou como fui parar naquele lugar. Tive a sensação que não podia esconder nada dele e contei-lhe minha história incluindo o grande ódio por meu pai. Ele achou tudo muito triste e indagou o porquê daquele nome e apelido: Conceição, a alegre. Disse-lhe que escolhi para esconder meu passado e a tristeza que carregava em meu coração. Foi então que algo maravilhoso aconteceu: ele me abraçou tão forte que não me contive e chorei em seus braços. Ele perguntou então se eu gostaria de deixar a vida de prostituta. Com um suspiro, como que de cansaço, deixei escapar um "sim". Olhei para ele e vi em seus olhos um brilho terno carregado de decisão.

"Escute bem", disse ele se chegando para mais perto de mim. "Estou de viagem marcada para amanhã. Irei resolver alguns negócios numa fazenda que tenho e devo ficar duas semanas fora. Quando voltar, quero que você esteja em minha casa me esperando. Resolva tudo por aqui, se despeça de suas amigas e dê adeus a este lugar. Você não será mais uma mulher da vida".

Fiquei a fitá-lo por um momento, incrédula, esperando que sorrisse e dissesse: "Brincadeira!!!". Mas ele permaneceu com a mesma expressão séria a olhar-me através de muito além de meus olhos. Eu perdi a voz e ele me abraçou novamente. Por fim deu-me o endereço e a cópia da chave de sua casa. Devo estar sonhando, disse-lhe. Isso não é real. Ele sorriu e apenas repetiu: "Duas semanas. Esteja lá quando eu voltar".

"Era pra mim tá lá agora esperando ele. Mas você tinha que aparecer, não é?" Eu cuspia enquanto jogava sobre ele meu protesto e indignação. "Tirou minha inocência no passado e agora veio levar o sonho de um futuro. Quando apareceu essa chance pra mim, você tinha que vir e estragar tudo!" Ele parecia confuso a fitar-me. De fato, não sabia do que eu falava. Mas agora ele estava ali. Já que tinha aparecido cabia a mim cumprir a promessa que fizera a mim mesma: tirar-lhe a vida.

As meninas que trabalhavam na casa da Bela perguntaram se eu estava brincando, pois nunca alguém foi ali para tirar alguma garota de programa daquela vida antes. "Você é uma felizarda, garota!" gargalhou Bela. Todas ficaram, enfim, felizes por mim e me deram um abraço coletivo. No dia seguinte, quando fiz minha mala, guardando nela apenas as roupas que eu mais gostava, fui me despedir das meninas no salão. O lugar estava animado e havia muitos homens ali. Cheiro de bebida e cigarro enchia o lugar. Olhei para todos os presentes como uma última fotografia que iria ficar revelada e gravada em minha mente, mostrando-me onde o ato de meu pai tinha me levado. Sim, tudo havia começado com ele.

Subitamente minha atenção foi tomada por um homem de meia-idade que adentrou o recinto sorrindo juntamente com alguns amigos. Quase que instantaneamente meu corpo todo estremeceu e minhas pernas perderam o equilíbrio e caí desfalecendo. Acordei na minha cama com Bela me olhando com ar de preocupação. "É ele! É ele!" Eu gritei já chorando. "É o homem que me violentou. É o meu pai!" Bela pediu para eu ficasse calma e lhe contasse o que tinha acontecido. Depois e me acalmar, revelei-lhe a identidade de meu pai e pedi-lhe para falar à garota que ficasse com ele naquela noite para sondar tudo o que pudesse sobre ele. Sem muito questionar Bela fez o que pedi.

Meu pai era da área da construção civil e estava na cidade contratado por uma empreiteira que estava à frente de uma grande obra financiada pela prefeitura. Fiquei sabendo ainda que minha mãe tinha falecido de ataque cardíaco e que eu tinha dois irmãos que não eram da minha mãe, além de mais coisas. Porém não descobri isso tudo por informações da garota que ficou com ele na noite em que desmaiei. Ela descobriu apenas onde ele trabalhava e eu, meio que dando uma de investigadora, fui à obra e fiz indagações às pessoas que com ele trabalhava sem, é claro, que ele soubesse.

Até que um dia, ainda atrás de mais informações, ele mesmo me abordou e quis saber o porquê de tantas perguntas a seu respeito. Notei que não me reconheceu. Desconversei, como só uma mulher vivida sabe fazer, e disse-lhe que trabalhava na casa da Bela e que o tinha visto lá. Menti ainda dizendo que o tinha achado muito atraente e gostaria de encontrá-lo à noite. Ele ficou meio desconfiado, mas isso foi até eu lhe falar que eu lhe daria um bom desconto. Sairia quase de graça. Ele sorriu quase que imediatamente. Eu também. Era dessa forma que ele iria morrer, pensei.

À noite, um dos primeiros rostos que apareceram no salão foi o dele. Bela foi me chamar no meu quarto e me perguntou o que eu ainda estava fazendo naquele lugar ao invés de estar na casa de Marcelo à espera dele. Como tivesse recebido um choque lembrei que duas semanas já haviam se passado e ele estaria chegando a qualquer momento. "Vou fazer esse último serviço e depois eu vou." Bela deu de ombros como que dizendo: "você é quem sabe".

Trouxeram meu pai ao meu quarto. O sorriso dele me dava náuseas. Fiz ele sentar na cama e tirei-lhe a camisa em silêncio. Podia ouvir sua respiração ofegante e, vendo-o ali comigo naquele quarto, fez com que todas as lembranças dolorosas ressurgissem ainda mais nítidas, latentes, dolorosas. Afastei-me apenas o suficiente para alcançar, debaixo do travesseiro, a arma que tinha adquirido logo após nosso encontro na obra. Com um salto me pus à frente dele, de prontidão, preparada para atirar.

"O que é isso, mulher! Tá lôca?" Ele se assustou e logo pôs as mãos para cima.

"Não me reconhece… pai?" Foi como se ligassem um interruptor na mente dele. Seus olhos arregalaram e então se lembrou de mim. "Vou matar você. Não podia ter feito aquilo comigo... eu era uma criança! Nenhuma criança merece passar por aquilo... Seu monstro!"

Enfim, agora ele estava ciente que iria morrer. Eu iria matá-lo por tudo o que fizera comigo. E quem sabe não havia feito com outras crianças? Seria por isso que minha mãe teria morrido do coração? Teria ela, de fato, descoberto as coisas perniciosas que ele fazia?

"Seu desgraçado!" Gritei e firmei meus pés para atirar. Olhei bem dentro dos olhos dele. Era o fim.

Crank! Alguém chutou a porta e ela se abriu violentamente. Era Marcelo. Ele tinha chegado de viagem e não tinha me encontrado em sua casa. Certamente veio saber dos meus próprios lábios o que houve para eu mudar de idéia. Porém em seus olhos vi o espanto por me ver apontando uma arma para um estranho.

Eu esbravejei:

"Esse aí é o canalha do meu pai! Que me estuprou, ameaçou me matar, fez eu fugir de casa com medo dele, me fez passar fome, me prostituir... É tudo culpa dele! Por isso vou matar ele! Ele merece morrer!"

Várias pessoas já estavam ali na porta, nervosas, de olhos fitos em nós. Mesmo assustado, Marcelo se esforçou para falar brandamente:

"Talvez ele mereça, Conceição... mas se for por suas mãos a chance de você ser feliz vai acabar".

Eu estava trêmula e ainda com a raiva pulsando em minhas têmporas. Como Marcelo poderia ser tão bom? Refleti que aquela chance de que falava era sobre nós dois. Talvez eu tivesse que agarrá-la com unhas e dentes e nunca mais soltar.

"Não faça isso. Venha comigo". Ele sussurrou com mansidão. "Se quer matá-lo, faça isso no seu coração. Ele acabou com sua inocência; não deixe que acabe com a sua vida também".

Fitei meu pai por mais alguns segundos em então baixei o revólver. Minhas lágrimas deram lugar a soluços altos e incontrolados. Eu precisava me libertar.

Marcelo chegou bem próximo ao meu pai e falou para ele: "Suma e nunca mais volte a colocar os pés nessa cidade de novo".

Foi a última vez que vi meu pai na vida. Marcelo levou-me para sua casa e cuidou das feridas que havia em minha alma. Foi um doloroso processo, mas conseguimos superar.

Hoje constituímos família e passamos a viver para nossas duas filhas, que hoje estão com oito e seis anos. Lindas e inocentes... como um dia já fui.

Inocência. Quem dera não a perdêssemos tão cedo.


Naasom A. Sousa
Email/MSN(Messenger): letrassantas@hotmail.com
Toda Glória, honra e louvor a Jesus, o Rei dos reis!

1 comentários:

Isabela disse...

Nossa! Sem palavras.
Em pensar que isso não é um conto, é uma realidade muito grande no nosso planeta.